Clubes foram bombardeados, atletas mataram e foram mortos, e até o estilo de jogo da Alemanha mudou.
Confira abaixo as histórias mais impressionantes e como os clubes lidaram com a ingerência do fascismo e as agruras da guerra.

Hitler torcia para quem?
O jornal britânico The Times publicou no início dos anos 2000 uma tese de que o Führer seria torcedor do Schalke 04.
Em resposta, o clube comissionou um estudo em 2004 que desbancou esta lenda, que surgiu porque o Schalke foi hexacampeão alemão durante o 3º Reich.
O sucesso do Schalke, no entanto, o transformou no time mais popular entre a elite do Partido, segundo Nils Havemann, historiador da Universidade de Stuttgart.
Mas fato é que todos os times foram sequestrados pelo regime. O Borussia Dortmund, arquirrival do Schalke, virou nazista de carteirinha: em 1939, ano em que estourou a II Guerra, 80% dos jogadores do Dortmund eram soldados da Sturmtruppen, a tropa de choque de Hitler.

Até 1933, o Dortmund era um time cheio de socialistas e comunistas, mas teve seu presidente e muitos de seus jogadores afastados devido à ingerência nazista.
Durante o III Reich, a equipe se desmanchou e se tornou saco de pancada do Schalke, chegando a levar um 10x0 no campeonato de 1941.

Segundo estudo do Bayern de Munique, cerca de metade dos dirigentes de todos os clubes grandes eram membros do Partido Nazista no final da década de 1930.
Conhecido como "clube de judeu", o Bayern, aliás, também acabou obrigado a incorporar uma suástica em seu emblema entre 1938 e 1945 — emblema esse que é omitido do site oficial do clube.
O melhor time de Munique na época era o 1860, que declarou seu máximo ao 3º Reich e virou a segunda força do país atrás do Schalke, com dois títulos nacionais.
Enquanto o Bayern sofria sanções, o 1860 se beneciava de alívio de impostos e um CT bancado pelo regime.
O Führer odiava futebol
Tudo leva a crer que Adolf Hitler tinha asco de futebol. E ele com certeza era pé frio, já que a única partida que assistiu in loco na vida foi Alemanha 0x2 Noruega, durante as Olimpíadas de 1936.
“100 mil pessoas deixaram o estádio em um estado de depressão. Ganhar um jogo é mais importante para as pessoas do que capturar uma cidade em algum lugar do leste”, escreveu o ministro da propaganda Joseph Goebbels em seu diário, após o jogo.

Propaganda até na casa do Tottenham
Apesar de sua aversão, Hitler e sua turma sabiam que o esporte movia multidões e tentou usá-lo em seu favor.
Inspirado na Copa do Mundo de 1934 sediada pela Itália fascista, o ditador alemão levou as Olimpíadas de 1936 para a capital Berlim.
A casa do Hertha Berlin é até hoje o Estádio Olímpico construído pelos nazistas para os Jogos de 1936.
Embora o estádio tenha sofrido muitas mudanças na parte interna, a arquitetura externa ainda é a mesma dos tempos de Hitler.
A seleção alemã também se tornou ferramenta de propaganda. Um dos casos mais notórios foi um amistoso entre Inglaterra e Alemanha, realizado em 1935 no White Hart Lane, antigo estádio do Tottenham — time com uma notória base de torcedores judeus.

O regime hitlerista organizou a viagem de 10 mil torcedores visitantes para a partida, com o intuito de que a massa fizesse a saudação nazista no estádio do Tottenham.
Apesar dos protestos, o amistoso aconteceu — e a Inglaterra meteu 3 a 0 nos alemães.
Outro exemplo do futebol sendo usado para fins políticos aconteceu em abril de 1938. Após a invasão da Áustria, a seleção alemã foi convocada para jogar um amistoso contra a seleção local para ajudar na ocupação nazista.
Com intuito de mostrar à população que a Alemanha não era uma ameaça, os jogadores da Mannschaft receberam ordens para jogar um futebol “de comadre” contra os austríacos.
Resultado em campo: Áustria 2x0 Alemanha, com dois pênaltis roubados. Resultado no referendo: 99% dos austríacos votaram pela anexação à nação invasora.
Alemanha ruim de bola, Hitler furioso
Usar a seleção como ferramenta de propaganda foi um tiro que saiu pela culatra. A Alemanha se deu mal nas Olimpíadas de 1936 e nas Copas de 1934 e 1938.
Em abril de 1941, no auge da Guerra, veio a gota d’água. A equipe alemã perdeu de 2 a 1 para a Suíça em Berna, em pleno aniversário de Hitler — Joseph Goebbels considerou a derrota imperdoável e ordenou que a Alemanha vencesse todos os seus jogos seguintes.
A ordem não deu certo. A seleção levou tanto ferro que o ministro da propaganda acabou proibindo partidas da Mannschaft em 1942.

A Bundesliga nazista
Em 1933, o Partido Nazista dividiu o campeonato alemão em ligas regionais — as chamadas Gauligas.
Conforme a Alemanha conquistava território, as Gauligas se expandiam, absorvendo times austríacos, tchecos, poloneses e ses.
Essa bizarrice fez com que o Rapid Viena, da Áustria, se tornasse campeão alemão em 1941.
Os vencedores das ligas regionais jogavam um mata-mata para decidir o campeão nacional — a final era disputada em Berlim, assim como acontece hoje na Copa da Alemanha.

Muitos jogos eram realizados em estádios danificados por bombardeios e a locomoção dos times era difícil e perigosa. “No entanto, os jogos de futebol ainda eram capazes de oferecer a alguns milhares de espectadores uma distração da rotina diária da guerra”, escreve o site do Bayern.
No inverno, algumas partidas só eram possíveis graças ao trabalho de prisioneiros de guerra, que tiravam neve dos gramados.
As Gauligas permaneceram em vigor até 1945, mesmo com as tropas aliadas a apenas alguns quilômetros de distância de alguns estádios.
Jogadores no front de batalha
Todos os atletas não dispensados do serviço militar foram convocados para lutar na guerra, menos os jogadores das Gauligas principais.
Os futebolistas dos times grandes recebiam certos privilégios, e até eram poupados de missões perigosas na linha de frente.
Mas conforme os aliados ganhavam terreno, mais e mais atletas eram convocados para o front.
No fim de 1942, todos os jogadores de futebol do país foram chamados para lutar.
Enquanto isso, velhos e jovens eram usados como substitutos nas equipes desfalcadas, já que o futebol tinha que continuar. “Isso simulava uma certa normalidade para a população”, contou Nils Havemann, historiador da Universidade de Stuttgart, ao jornal Augsburger Allgemeine.

Estes times alternativos explicam os resultados malucos que aram a acontecer no futebol de elite, como a goleada monstra do Schalke em cima do Dortmund citada mais acima neste texto. “Um placar de 13 a 1 não era nada fora do comum na época", acrescentou Havemann.
Apesar da falta de craques, das viagens quase impossíveis e dos estádios e equipes bombardeados, o título do campeonato alemão foi disputado até 1944.

Craques que mataram
Se a maioria dos jogadores eram obrigados a lutar como meros soldados, alguns deles viraram monstros do regime.
Rudolf Gramlich, ex-jogador e presidente do Frankfurt, foi membro de uma das mais sanguinárias tropas da SS.

Mas talvez a história mais notória seja a de Otto Harder, bicampeão alemão com o Hamburgo e atacante da seleção.
Harder foi comandante do campo de concentração de Ahlem, onde centenas de pessoas foram assassinadas.
E um dos presos do campo de Ahlem foi o meio-campista judeu Asbjorn Halvorsen, ex-companheiro de ataque de Harder no time do Hamburgo.

Por crueldade do destino, Halvorsen também era o técnico da Noruega que venceu a Alemanha naquela partida — a única — presenciada por Hitler.
Halvorsen sobreviveu ao campo de concentração, mas faleceu alguns anos depois em decorrência das sequelas (tifo, reumatismo e desnutrição extrema).

Craques que morreram
Outros jogadores não tiveram a mesma sorte. Estima-se que cerca de 300 jogadores judeus desapareceram durante o nazismo.
Nos últimos anos da guerra, 20 jogadores da seleção da Alemanha perderam suas vidas em combate.

Jogadores negros foram banidos do esporte — há um caso documentado de um futebolista de cor chamado Heinz Kerz que foi castrado pelos nazistas e enviado para o campo de concentração de Dachau.
Há também casos de resistência, como o cartola Willy Buisson, do Bayern de Munique, que era contra o regime e foi executado em 1940.
O Bayern estima que 63 atletas e dirigentes do clube morreram por conta do III Reich. O time foi rebaixado algumas vezes durante o período, e chegou ao fundo do poço da Gauliga da Bavária.
A guerra mudou o jogo alemão
A guerra e o nazismo também mudaram o jeito de a Alemanha jogar futebol.
No livro “Football in Europe During the Second World War”, o escritor holandês Simon Kuper explica que antes de 1933, a seleção alemã tinha a reputação de jogar um estilo de futebol atraente e habilidoso.

Sob o nazismo, porém, o conceito de Kampf (luta) espalhado pelo regime em todas as esferas da sociedade também tomou o futebol de assalto. Os jogadores viraram "lutadores” e o "jogo bonito” ou a ser ridicularizado.
O futebol alemão se tornou altamente organizado e eficiente, mais rápido e direto.
Com este estilo, a Mannschaft ganharia seus dois primeiros títulos mundiais, em 1954 e 1974.
Acerto de conta com o ado
Muito do envolvimento do nazismo com o futebol alemão é desconhecido. A Federação Alemã (DFB) diz que a maioria dos documentos da época foram destruídos em um bombardeio que destruiu a sede da entidade em Berlim.
De qualquer forma, muitos clubes formaram comissões para tentar reparar erros do ado e homenagear membros que foram perseguidos e mortos.

Um dos dirigentes mais celebrados atualmente é Kurt Landauer, presidente histórico do Bayern de Munique.
Landauer era judeu e teve de deixar o comando do clube em 1933. Ele retornou a Munique após a guerra e retomou a presidência do Bayern até 1951 – hoje Landauer tem estátua na frente da Allianz Arena e dá nome à rua de frente ao estádio.

Em 2024, Berlim sediou uma exposição sobre os efeitos nefastos do nazismo nos clubes do país.
Mais homenagens e novas descobertas estão prometidas para 2025, ano em que o final da 2ª Guerra Mundial completa 80 anos.